Disciplina: Língua Portuguesa 0 Curtidas
Destes comentários sobre os trechos sublinhados, o único - FUVEST 2012
Passaram-se semanas. Jerônimo tomava agora, todas as manhãs, uma xícara de café bem grosso, à moda da Ritinha, e tragava dois dedos de parati “pra cortar a friagem”.
Uma transformação, lenta e profunda, operava-se nele, dia a dia, hora a hora, reviscerando-lhe o corpo e alando-lhe os sentidos, num trabalho misterioso e surdo de crisálida. A sua energia afrouxava lentamente: fazia-se contemplativo e amoroso. A vida americana e a natureza do Brasil patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e sedutores que o comoviam; esquecia-se dos seus primitivos sonhos de ambição, para idealizar felicidades novas, picantes e violentas; tornava-se liberal, imprevidente e franco, mais amigo de gastar que de guardar; adquiria desejos, tomava gosto aos prazeres, e volvia-se preguiçoso, resignando-se, vencido, às imposições do sol e do calor, muralha de fogo com que o espírito eternamente revoltado do último tamoio entrincheirou a pátria contra os conquistadores aventureiros.
E assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus hábitos singelos de aldeão português: e Jerônimo abrasileirou-se. (...)
E o curioso é que, quanto mais ia ele caindo nos usos e costumes brasileiros, tanto mais os seus sentidos se apuravam, posto que em detrimento das suas forças físicas. Tinha agora o ouvido menos grosseiro para a música, compreendia até as intenções poéticas dos sertanejos, quando cantam à viola os seus amores infelizes; seus olhos, dantes só voltados para a esperança de tornar à terra, agora, como os olhos de um marujo, que se habituaram aos largos horizontes de céu e mar, já se não revoltavam com a turbulenta luz, selvagem e alegre, do Brasil, e abriam-se amplamente defronte dos maravilhosos despenhadeiros ilimitados e das cordilheiras sem fim, donde, de espaço a espaço, surge um monarca gigante, que o sol veste de ouro e ricas pedrarias refulgentes e as nuvens toucam de alvos turbantes de cambraia, num luxo oriental de arábicos príncipes voluptuosos.
Aluísio Azevedo, O cortiço.
Destes comentários sobre os trechos sublinhados, o único que está correto é:
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“tragava dois dedos de parati” (L. 3): expressão típica da variedade linguística predominante no discurso do narrador.
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“pra cortar a friagem” (L. 3 e 4): essa expressão está entre aspas, no texto, para indicar que se trata do uso do discurso indireto livre.
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“patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos” (L. 10): assume o sentido de “registravam oficialmente”.
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“posto que em detrimento das suas forças físicas” (L. 25): equivale, quanto ao sentido, a “desde que em favor”.
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“tornava-se (...) imprevidente” (L. 13 e 14) e “resignando-se (...) às imposições do sol” (L. 16 e 17): trata-se do mesmo prefixo, apresentando, portanto, idêntico sentido.
Solução
Alternativa Correta: B) “pra cortar a friagem” (L. 3 e 4): essa expressão está entre aspas, no texto, para indicar que se trata do uso do discurso indireto livre.
O discurso da personagem, destacado por aspas (“pra cortar a friagem”), aparece inserido no discurso narrativo. A incorporação do discurso da personagem no discurso do narrador caracteriza o discurso indireto livre, marcado pelas transformações necessárias a tal incorporação. Portanto, não há dúvida quanto à resposta deste teste, pois, embora as marcas do discurso indireto livre não ocorram no trecho da alternativa b, por não serem pertinentes, todas as demais alternativas contêm erros evidentes (a: o discurso do narrador observa a norma culta e a expressão transcrita é informalmente coloquial, com o brasileirismo parati no sentido de “aguardente de cana; b: patentear significa “manifestar, tornar evidente” e nada na expressão transcrita significa “oficialmente”; d: posto que em detrimento de... significa “embora com prejuízo para...”; e: o prefixo in-/im-, em imprevidente, é negativo; o prefixo in-/im-, em imposições, significa “sobre” – impor = “pôr sobre” como obrigação). O problema, neste teste, é que o trecho em questão pode ser entendido como simples citação literal (daí as aspas) do discurso da personagem, pois não há nele nenhum dos elementos linguísticos que imporiam as transformações características do discurso indireto livre (alteração de tempos verbais, de pessoas verbais e pronominais e de referências adverbiais). Sem tais transformações, pode-se considerar o trecho seja como discurso indireto livre, seja como discurso direto não introduzido por verbo declarativo. Portanto, este é, infelizmente, mais um teste da prova da Fuvest prejudicado por imprecisão.
Créditos da Resolução: Curso Objetivo
Institução: FUVEST
Ano da Prova: 2012
Assuntos: Interpretação Textual
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