Disciplina: Língua Portuguesa 0 Curtidas

O tom predominante no texto é de a) resignação. b) - UNIFESP 2016

Atualizado em 30/10/2024

Leia o excerto da crônica “Mineirinho” de Clarice Lispector (1925-1977), publicada na revista Senhor em 1962, para responder a questão.

É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora1. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho2 do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”.
Por quê? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais – vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva. Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver.

(Clarice Lispector. Para não esquecer, 1999.)

1 facínora: diz-se de ou indivíduo que executa um crime com crueldade ou perversidade acentuada.
2 Mineirinho: apelido pelo qual era conhecido o criminoso carioca José Miranda Rosa. Acuado pela polícia, acabou crivado de balas e seu corpo foi encontrado à margem da Estrada Grajaú-Jacarepaguá, no Rio de Janeiro.

O tom predominante no texto é de

  1. resignação.

  2. ironia.

  3. melancolia.

  4. indignação.

  5. luto.


Solução

Alternativa Correta: D) indignação.

A alternativa D) é a correta porque o tom predominante no excerto da crônica “Mineirinho” de Clarice Lispector é claramente de indignação. A narradora reflete sobre a complexidade da morte de Mineirinho, um facínora, e expressa seu desconforto em relação à violência que o cercou. O uso de expressões como “violenta compaixão da revolta” e a própria luta interna da narradora em conciliar sua compreensão da criminalidade de Mineirinho com a tristeza pela sua morte revelam um forte sentimento de indignação diante da injustiça social e da brutalidade que ele enfrentou.

Lispector utiliza uma linguagem que evoca emoções profundas e contraditórias, como a compaixão por um homem que, apesar de ser um criminoso, é reconhecido como um ser humano com uma história e uma vida. O desespero e a perplexidade da narradora ao ouvir os disparos, que vão de um alívio inicial a uma profunda vergonha e horror, reforçam essa indignação. Ao final, a autora enfatiza que “meu erro é o meu espelho”, sugerindo que a sociedade tem um papel na formação dos indivíduos e que o assassinato de Mineirinho é também um reflexo dos erros coletivos.

Portanto, o texto não se limita a lamentar a morte de um criminoso, mas questiona a moralidade da sociedade que permite tais violências. A indignação surge da consciência de que, embora a lei proíba o homicídio, as circunstâncias que levam a essa violência são complexas e frequentemente ignoradas. A crônica provoca o leitor a refletir sobre a desumanização do outro e a responsabilidade social, estabelecendo um tom de crítica e de indignação diante da realidade brutal que se desenrola.

Institução: UNIFESP

Ano da Prova: 2016

Assuntos: Interpretação Textual

Vídeo Sugerido: YouTube

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